Os cães (Canis lupus familiaris) e gatos (Felis catus) são os animais preferidos dos seres humanos e, assim como nós, através da seleção natural (nem tão natural assim) esses animais foram evoluindo e se tornando o que são hoje, espécies com um grau elevado de parentesco com seus congêneres silvestres, porém muito adaptadas ao ambiente doméstico. Com o passar dos anos, esses animais e alguns outros começaram cada vez mais a fazer parte do nosso cotidiano, visto que tinham alguma função além de nos fazer companhia e bem-estar como nos dias de hoje.
O problema é que, a princípio foram domesticados com a função de auxiliar principalmente na caça, e que inclusive não deixam a desejar nesse requisito pois, a nível trófico, são animais topo de cadeia alimentar e exímios predadores.
Pare para pensar, o seu lindo gatinho, que gosta de brincadeiras com penas, bichinhos e que até te trazem presentinhos de vez em quando (as lagartixas que lutem, né?), o que eles fazem quando estão soltos na natureza? Ou quando são deixados para andar livremente por aí? Depois da supressão do habitat (desmatamento), os ataques por animais domésticos à fauna silvestre são a segunda maior causa de extinção de espécies nativas no mundo. Os queridos gatos ainda, se encontram na lista das cem piores espécies exóticas invasoras do planeta.
Um bom exemplo do impacto que esse animais de vida livre causam à fauna silvestre aqui no Brasil são as matilhas de cães ferais que caçam veados e catetos no Parque Nacional de Brasília e no Parque Nacional da Tijuca, no Rio de Janeiro, onde há diversos relatos de ataques por gatos ferais à fauna nativa, com um número total de ataques registrados por animais domésticos carnívoros sendo 85,11% dos correspondentes os cães e 14,89%, gatos.
Além do impacto predatório que os animais domésticos causam na natureza, outra preocupação são as zoonoses (doenças infecciosas transmitidas entre animais e pessoas) introduzidas por esses animais aos silvestres, podendo transmitir mais de 30 zoonoses e agentes patogênicos, como a Cinomose e a Toxoplasmose, dois exemplos bem conhecidos, que causaram danos em todo o mundo, devastado populações de espécies ameaçadas e levando outras a risco da extinção, como o Furão-do-pé-preto (Mustela nigripes), espécie nativa da América do Norte.
Esses animais podem ainda predar morcegos, por exemplo, e outros animais transmissores de zoonoses, e assim contrair e transmitir a patogenia para outros animais e para o homem. Como no caso da raiva, que é uma zoonose de grande importância mundial, sendo fatal em quase 100% dos casos, onde o controle e a prevenção têm um certo custo elevado e tendo a presença de animais não vacinados, aumentando a preocupação com um possível ressurgimento como problema de saúde pública.
É um grande exemplo a pandemia do COVID-19 que, com o comércio e consumo de animais de estimação silvestres e/ou exóticos, ocasionou o contato humano ao coronavírus SARS-CoV-2, implicando na propagação da doença através dos continentes.
E indo um pouco mais além dos animais comuns de estimação, não podemos deixar de lembrar de animais exóticos que já se tornaram um grande problema para a fauna local no mundo todo, como por exemplo o caso das Pítons Birmanesas (Python bivittatus), nativas do sudeste asiático, encontradas em Everglades, na Flórida (EUA), que provavelmente foram vítimas de abandono por parte de seus donos, possivelmente porque seus “animais de estimação”, que são uma das cinco maiores espécies de serpentes do mundo haviam “crescido demais”. Ao encontrarem um ambiente extremamente favorável para seu modo de vida, esses animais se reproduziram de maneira desenfreada, além de ter uma grande ausência de predadores naturais. Atualmente, as regiões ocupadas pelas serpentes registraram reduções de 99,3%, 98,9% e 87,5% nas populações de guaxinins, gambás e linces, respectivamente. Nenhum coelho, outro habitante nativo dos Everglades, foi detectado pelo estudo que acompanhou este declínio.
Outro caso, é o fungo Batrachochytrium salamandrivorans, um parente próximo do fungo que infecta espécies de sapo no mundo inteiro, e já pode ter levado à extinção mais de 90 espécies de salamandras. Este caso ocorreu no Canadá, no qual o espalhamento do fungo havia sido introduzido na Europa, vindo do sul da Ásia.
Aqui no país, pesquisadores encontraram 37 espécies de animais silvestres que interagem, seja ela com predação, competição ou transmissão de doenças, com cães. Desse total, 85% (27 espécies desses) são mamíferos de médio ou grande porte, sendo que 19 (55%) estão listados como ameaçados de extinção no Brasil.
No interior paulista, foi implantado um programa chamado “Cãoservação”, onde os estudos se concentram na região do Parque Estadual Carlos Botelho (PECB), uma área remanescente com cerca de 2 mil quilômetros quadrados de Mata Atlântica. Próximo ao parque fica o município de São Miguel Arcanjo, com cerca de 33 mil habitantes, onde pesquisadores estudam a relação dos moradores da cidade e seus animais de estimação com a fauna silvestre do local.
Nesse projeto eles utilizam armadilhas fotográficas, chamadas de câmeras traps (câmeras que disparam quando o animal passa por elas) pela floresta, além de armadilhas físicas, como objetivo de capturar alguns animais para coletar sangue e verificar se eles estão infectados com doenças ou parasitas. Essas armadilhas também permitem que os pesquisadores verifiquem até onde os cães e gatos domésticos avançam dentro do parque. No caso dos animais domésticos, o grupo de pesquisadores passa de casa em casa, falando com os moradores sobre o programa e coletando sangue e pêlos de seus animais. Além disso, são vacinados e vermifugados e são implantados microchips e rádio colares que permitem monitorar seu avanço na floresta.
Todas as doenças pesquisadas pelo programa “Cãoservação” podem afetar nós, seres humanos e, portanto a consciência ambiental é o conceito do projeto, no qual os pesquisadores esperam expandir a nível nacional a partir de seus resultados: a saúde única, visando contribuir com ela tanto para nós, quanto para os animais silvestres e domésticos afetados.
Visto que, um dos princípios do bem-estar animal, é de que os tutores têm o dever de cuidar apropriadamente de seus animais além de seus descendentes, devem minimizar o risco à saúde e integridade do público ou de outros animais, dado que em média, 10% dos tutores de gatos nunca vacinou seus animais que, tendo contato com gatos de vida livre, possibilita a troca de patógenos entre eles e outros animais, e inclusive com o homem.
Muitos dos animais de estimação são abandonados, fazendo com que seja esse outro grande responsável pelo aumento de animais não domiciliados, ou seja, sem um lar, havendo muitas vezes uma quebra traumática do vínculo humano-animal podendo impactar diretamente na dinâmica populacional desses animais.
Inclusive, uma das maneiras de amenizar os impactos desses animais ao ambiente silvestre é o controle populacional, que é o conjunto de estratégias para controlar as populações de cães e gatos e alguns outros animais exóticos. Porém as mesmas podem também afetar o bem-estar animal, incluindo métodos desumanos e cruéis de captura e extermínio, sendo uma prática restrita à profissionais qualificados. É essencial que este manejo seja praticado humanitariamente, visando não apenas a melhora no impacto à fauna silvestre, mas ainda o bem-estar ao animal doméstico.
Portanto, o avanço da moradia das populações humanas em localidades próximas a parques nacionais e florestas aumentam a presença de animais domésticos, associado ao abandono e à posse irresponsável. Agregado com a fragmentação de habitat e redução de recursos naturais, afetam negativamente as populações silvestres sendo potencialmente um fator de risco não só aos animais, com transmissão mútua de patógenos, mas também aos humanos.
A identificação da presença de patógenos potencialmente compartilhados entre animais domésticos e silvestres que vivem nas imediações, assim como um controle populacional eficiente e a implementação de programas de manejo de animais domésticos é de fundamental importância para que se mantenham saudáveis os animais de vidas silvestres, assim como as vidas humanas e seus companheiros domésticos.
Arte: Natália Lavínia A. de Souza;
Texto: Mariana G. Furquim;
Pesquisa: Daniela Brustolin; Raphael Martins;
Texto Instagram: Aline Freiria dos Reis.
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