A medicina natural está intrínseca em nossa história e cultura, disso nós já sabemos bem. Há relatos que, desde a antiguidade, nós fazemos o uso da fitoterapia, que é tratamento ou prevenção de doenças através do uso de plantas. Eu duvido que você não saiba dizer pelo menos um remédio caseiro ou natural que seus pais e, principalmente seus avós, te indicaram. Os famosos chazinhos que o digam.
Então por que com os animais seria diferente? Acredita-se que nós só adquirimos a habilidade de conhecer o uso medicinal das plantas por observarmos o comportamento que os animais silvestres tinham quando estavam doentes e seus respectivos mecanismos de automedicação. As observações mais antigas que se tem registro são datadas de 384 - 322 a.C por Aristóteles, em “Historia animalium” e em “Naturalis historia”, por Plínio, o Velho em 77 - 79 a.C. Eles descrevem como os animais silvestres se comportavam ao ficarem doentes e como melhoravam ao ingerir plantas e substâncias específicas que eles mesmo buscavam na natureza.
Aliás, alguma vez você já observou seu cão ou gato ingerindo capim? Esse é um mecanismo de automedicação que nossos animais de estimação herdaram de seus antepassados. Ao ser ingerido, o capim pode ser utilizado para induzir o vômito, auxiliando na remoção de toxinas, bactérias e parasitas, além de suprir outras questões nutricionais que o organismo dos nossos companheiros entende ser necessário naquele momento. Zoofarmacognosia é o nome dado para estes mecanismos auto-medicativos. Esse comportamento está presente em todos os tipos de animais, observado principalmente em mamíferos, como os primatas. Agora fica mais fácil de entender como nós aprendemos a nos automedicar também, né?
No final dos anos 1980, o primatologista Michel Huffman da Universidade de Kyoto, no Japão, observou que uma chimpanzé muito doente se alimentou de um tipo de folha amarga, Vernonia amygdalina, uma espécie de boldo e depois de horas, foi observado que o animal já aparentava estar muito melhor. Ao analisar as fezes da chimpanzé,descobriu-se uma grande quantidade de vermes da espécie Oesophagostomum stephanostomu. Com a continuidade destes estudos, o pesquisador observou entre outros chimpanzés e Bonobos o mesmo comportamento: ao analisar suas fezes depois de ingerirem uma grande quantidade de folhas, essas plantas saiam quase que inteiras e cheias de parasitas grudados, concluindo que elas serviam como um velcro para vermes. Além dos primatas, outros mamíferos de pequeno e grande porte como as Civetas e o Urso Pardo também utilizam mecanismos parecidos como um tipo de vermicida.
Em linhas gerais, os mecanismos de automedicação foram observados e classificados em 5 etapas: 1ª - Os animais começam com os comportamentos doentios, com sintomas já visíveis; 2ª - Depois evita-se o contato com outros animais ou com meios de transmissão como a água e alimentos compartilhados; 3ª - Inicia-se a ingestão de alimentos bióticos e nutritivos, a fim de promover uma prevenção aos efeitos mais graves; 4ª - ingestão de substâncias terapêuticas como plantas tóxicas ou bióticas em baixas quantidades, próprias para o sintomas/doença; 5ª - Utilização de mecanismos de defesa externos que auxiliem na promoção da saúde, como os ninhos e os “repelentes” já comentados acima, assim como o uso de outras substâncias.
Além da ingestão, a zoofarmacognosia também está presente no ambiente do animal, como foi observado com mais de 200 espécies de aves, que em certos momentos, constroem seus ninhos com plantas que possuem substâncias capazes de impedir a infestação de pulgas, carrapatos, vermes e outros organismos danosos para sua saúde.
Existem também outras maneiras de se automedicar, como fazem alguns orangotangos e macacos-pregos observados, espalhando certos tipos de plantas e até frutas como repelentes. Será que conseguimos aprender com eles para espantar pernilongos e mosquitos indesejados?
Vamos ver alguns exemplos incríveis de animais que realizam a automedicação?
Existem de fato muitos animais nos quais esse comportamento foi observado, inclusive nos invertebrados. Um belo exemplo são as borboletas Monarcas, que em sua fase larval (lagartas), ingerem plantas que são inofensivas para elas, porém tóxicas para outras espécies. Isso evita que sejam parasitadas por outros insetos, além de proteger seus ovos e filhotes.
Além dos efeitos curativos e preventivos, alguns animais utilizam as plantas para auxiliar em sua reprodução, como foi observado nas cabras silvestres e no macaco Tibetano: eles utilizam a Epimedium sagittatum, uma erva que tem uma grande reputação para o tratamento da disfunção erétil, para aumentar os níveis de estrogênio na pós-menopausa e também para tratar a osteoporose. A erva é popularmente conhecida como Yin Yang Huo ou Erva-daninha-das-cabras, já que suas propriedades foram descobertas por um pastor ao observar que ao ingerí-las, seus animais tornavam-se sexualmente excitados e que os conflitos que envolviam comportamentos sexuais de ambos os sexos, haviam sido amenizados. Hoje em dia, esta planta é famosa na saúde reprodutiva e promove a saúde sexual para homens e mulheres.
Um exemplo da prevenção de doenças que os animais fazem é o do Ganso das Neves casnadense, que quando jovens, fazem uma limpa geral, um tipo de desintoxicação antes de migrarem por um longo e demorado percurso que se torna especialmente estressante pois nem mesmo podem se alimentar.
Por fim, também tem os animais que produzem seu próprio remédio, como as maravilhosas abelhas, que coletam a resina que as árvores produzem como defesa e misturam com a sua cera, auxiliando na defesa contra muitos tipos de patógenos capazes de acometer a colméia. Além disso, elas também ingerem parte dessa substância para prevenir e curar doenças. Essa tática foi recentemente redescoberta graças ao avanço da apicultura. Os produtores de mel, que não gostavam muito da consistência viscosa que essa mistura de resina e mel formava, selecionaram as abelhas que menos utilizavam essa resina naturalmente, porém a saúde desses insetos também foi ficando cada vez mais frágil. Os produtores estão voltando a estimular a reprodução desse remédio que beneficia não só as colméias como também a própria produção.
Aliás, aprender com os animais e a natureza como um todo é uma virtude que infelizmente perdemos com o tempo. Existem algumas crenças e culturas antigas, como a dos Blackfoot, na América do Norte, que acreditavam que o seu criador Na'pi, tenha ensinado os humanos a buscar sabedoria e conselhos observando animais. O que faz muito sentido.
E então, você imaginava que existia toda essa sabedoria evolutiva entre os animais silvestres e a medicina natural?
Infelizmente, com a destruição da biodiversidade vegetal, unido ao desmatamento em larga escala, está cada vez mais difícil dos animais silvestres contarem com a diversidade de plantas e substâncias de propriedades medicinais facilmente encontrados em ecossistemas saudáveis. Deve-se portanto incluir na preservação de habitats naturais a biodiversidade como um todo. É importante também para a conservação de animais silvestres em cativeiro que seus cuidadores tenham ciência de que a automedicação deve ser tratada como um hábito rotineiro desses animais e assim ser também planejada em sua reabilitação e realocação.
Arte: Aline Freiria dos Reis;
Texto: Mariana G. Furquim;
Pesquisa: Amanda Oliveira; Daffiny Kapitanovas;
Texto Instagram: Amanda Oliveira.
Referências Bibliográficas:
Como animais encontram remédios na natureza. Série 'CrowdScience'
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