Quando Bertha Lutz veio ao mundo, as mulheres tinham poucos direitos. Não votavam nem ocupavam cargos públicos, e ser cientista não era uma opção nada fácil.
Mas ela foi contra a corrente, fez carreira como bióloga, lutou pelo voto feminino no Brasil, e fez a igualdade de gênero ser reconhecida internacionalmente.
Bertha Maria Júlia Lutz nasceu em 1894 em São Paulo. Ela era filha do Médico e Cientista Adolfo Lutz, pioneiro do estudo das doenças tropicais, e da enfermeira inglesa Amy Gertrude Fowler, que Lutz conheceu no Havaí quando foi estudar a hanseníase.
Desde criança Bertha demonstrava um certo interesse por animais e plantas, e com apenas 14 anos foi estudar na Europa e aí que começou a perceber que os direitos femininos podiam ser diferentes!
Ela concluiu o equivalente ao ensino médio no interior da Inglaterra e se graduou em Biologia em Paris na Sorbonne no ano de 1918, também se formou em direito mais tarde, no ano de 1933. Sua especialização em Anfíbios Anuros - sapos, rãs e pererecas - deu continuidade aos estudos em zoologia médica de seu pai, e resultou na catalogação de mais de 4.400 espécies nacionais ao longo de sua vida. Outra grande contribuição de Bertha para a ciência foi a manutenção do vasto trabalho de Adolfo em variadas áreas como parasitologia, veterinária, zoologia médica, bacteriologia, dermatologia e botânica. Ela preservou todo o material botânico e zoológico, bem como seus estudos, compilados em mais de 8.000 páginas.
Bertha em seu laboratório do Museu Nacional, no Rio de Janeiro em 1968. Imagem: usp.br
A atuação de Bertha frutificou também na política, ainda na graduação Bertha conheceu e foi influenciada pelo movimento sufragista, que lutava pelo direito das mulheres ao voto.
Um ano depois de voltar ao Brasil, ela prestou um concurso para trabalhar no museu nacional, no Rio de Janeiro. Passou em 1º lugar e foi nomeada secretária, tornando-se a segunda mulher a ocupar um cargo público no país.
Bertha organizou o I Congresso Feminista do Brasil, fundou a Federação Brasileira pelo Prograsso Feminino (FBPF) e assumiu um papel de liderança na luta pelos direitos da mulheres no país. Ela era pacifista e tinha horror a qualquer forma de mobilização para a guerra. E como presidente da federação, em 1926 recebeu aqui no Brasil a cientista Marie Curie, a primeira mulher a ganhar um Nobel e sua filha Irène, que também venceu o prêmio.
Quase 10 anos depois, a FBPF teve a sua maior vitória, quando Getúlio Vargas instalou um novo Código Eleitoral, inaugurando o voto feminino no Brasil! Em 1934, nas primeiras eleições com mulheres votando, Bertha foi eleita Deputada Federal Suplente e logo 2 anos depois, ela foi eleita Deputada, pois o titular Cândido Pessoa veio a falecer.
Mas sua carreira parlamentar durou pouco, graças a outra intervenção do presidente: em 1937 Getúlio Vargas decretou o Estado Novo e fechou o Congresso Nacional, encerrando assim o mandato de Bertha.
No ano de 1945 Bertha foi a enviada oficial do governo brasileiro à conferência de São Francisco, cujo derivou a criação da Organização das Nações Unidas (ONU), onde dentre 850 delegados de 50 países, haviam apenas 6 mulheres. Mesmo em minoria, Bertha lutou até o fim da conferência para que o texto da carta que fundamenta a ONU incluísse a igualdade de gênero. Que ela venceu, e está lá, logo no preâmbulo:
“Nós, os povos das Nações Unidas, resolvidos a(...) reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres(...)” - Preâmbulo da carta da ONU, 1945.
Bertha foi uma das 4 mulheres a assinar o documento, e antes mesmo do fim da Segunda Guerra Mundial, ela colocou a mulher no mapa dos direitos humanos universais.
Bertha Lutz na conferência da ONU em 1945. Imagem: revistahcsm.coc.fiocruz.br
“Recusar à mulher a igualdade de direitos em virtude do sexo é denegar justiça a metade da população.”
Além da militância, Bertha trabalhou no Museu Nacional por mais de 40 anos e em 1964 se aposentou como chefe do setor de botânica.
Suas contribuições formais para a herpetologia só foram publicadas depois dos seus quarenta anos de idade e, ainda assim, ao longo de sua carreira, Bertha foi autora de mais de 50 publicações sobre a herpetofauna brasileira.
Ela descreveu mais de 60 espécies de anuros e fez contribuições importantes para a compreensão da evolução da história de vida dos anuros, destacando que os anfíbios tropicais exibiram uma diversidade excitante e pouco estudada de modos reprodutivos que diferiam daqueles de anuros de outras regiões.
Em 1973, ela publicou o que poderia ser chamada de sua obra prima, o livro Brazilian Species of Hyla, uma visão geral de 250 páginas com mais de 130 espécies de hilídeos (pererecas) conhecidas pelos cientistas no Brasil na época, que apresentava fotografias tiradas por seu irmão, Gualter Adolfo Lutz. Infelizmente, Bertha morreu antes de completar os volumes adicionais que havia planejado, que deveriam abranger outros gêneros de hilídeos.
Um ano depois de sua aposentadoria, ela finalmente viu o voto se igualar ao voto masculino no Brasil, até então só as mulheres assalariadas podiam votar. Em 1975, um ano antes de sua morte, ela voltou a uma conferência da ONU, convidada pelo Itamaraty como integrante da delegação brasileira para a Conferência do Ano Internacional da Mulher, no México.
Bertha não se casou e não teve filhos ou sobrinhos, já que seu irmão morreu em 1966. Ela viveu até os 82 anos e morreu em 1976 em um asilo no Rio de Janeiro, vítima de uma pneumonia aguda. E antes de morrer no mesmo ano, doou seu acervo pessoal, com documentos, imagens e cartas para o Museu Nacional. Estes inestimáveis registros viraram cinzas no incêndio de 2018.
Mas a chama do trabalho de Bertha segue acesa, seja por meio do diploma Bertha Lutz, prêmio oferecido anualmente pelo Senado Federal a pessoal que contribuem para a defesa dos direitos da mulher e questões de gênero no Brasil.
Seja pelas milhares de espécies catalogadas, algumas batizadas em homenagem a ele e aos seus estudos, como a Dendropsophus berthalutzae, a Scinax berthae e Aplastodiscus lutzorum.
Dendropsophus berthalutzae, a Scinax berthae e Aplastodiscus lutzorum, respectivamente. Imagens: inaturalist.org, ecoregistros.org, zookeys.pensoft.net
Seja porque virou história em quadrinhos, como em “Bertha Lutz e a Carta da ONU” (também tem o filme!), ou seja por suas palavras que norteiam as Nações Unidas desde o início até o fim.
Bertha Lutz, uma mulher, brasileira, cientista e ativista, a maior líder na luta pelos direitos políticos das mulheres brasileiras, mudou na política e na ciência o futuro das mulheres e de milhares de pessoas no Brasil e no mundo!
História em quadrinhos "Bertha Lutz e a Carta da ONU" conta as reuniões para a elaboração da carta e flashbacks de Bertha. Imagem: gauchazh.clicrbs.com.br
Texto: Mariana G. Furquim;
Pesquisa: Diego G. Cavalheri;
Texto Instagram: Aline Freiria dos Reis;
Arte: Aline Freiria dos Reis.
Referências Bibliográficas:
LOPES, M. M, et al. A construção da invisibilidade das mulheres nas ciências: a exemplaridade de Bertha Maria Júlia Lutz (1894-1976). v. 5 n. 1 (2004): Revista Gênero. 2012. Disponível em: <https://periodicos.uff.br/revistagenero/article/view/31006>. Acesso em: 14 de julho de 2022.
FUSINATTO, L. A. et al. Notes on Geographic Distribution. Amphibia, Anura, Bufonidae, Dendrophryniscus berthalutzae:
Distribution extension and geographic distribution map. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional. 2008. Disponível em: <https://www.biotaxa.org/cl/article/view/4.3.248/16889>. Acesso em: 14 de julho de 2022.
MOURA, M. R. et al. Advertisement call and distribution of Dendropsophus berthalutzae (Anura: Hylidae). Universidade Federal de Viçosa. Departamento de Biologia Animal, Museu de Zoologia João Moojen. 2012. Disponível em: <https://www.researchgate.net/profile/Mario-Moura-6/publication/261912938_Advertisement_call_and_distribution_of_Dendropsophus_berthalutzae_Anura_Hylidae/links/0f317535e9a1848443000000/Advertisement-call-and-distribution-of-Dendropsophus-berthalutzae-Anura-Hylidae.pdf>. Acesso em: 14 de julho de 2022.
Bertha Maria Julia Lutz. American Society of Ichthyologists and Herpetologists. Ichthyology & Herpetology 109, No. 3, 2021, 910–911. Disponível em: <https://static1.squarespace.com/static/570d1ea37da24f381ca53c95/t/615c7653f374a61f79fb9355/1633449555766/21-109-03-26_910..911.pdf>. Acesso em: 14 de julho de 2022.
SOUSA, L. G P. et al. Para ler Bertha Lutz. Trabalho realizado no âmbito do projeto temático “Gênero, Corporalidades” (FAPESP, processo n° 03/13691-0) coordenado por Mariza Corrêa. Cadernos pagu (24), janeiro-junho de 2005, pp.315-325. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/cpa/a/XWz4cnThBxsxXRgFcyNvzjy/?lang=pt&format=pdf>. Acesso em: 14 de julho de 2022.
MARAVILHOSA !!!!